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📚 "Longa pétala de mar", de Isabel Allende

Foto do escritor: Dawton ValentimDawton Valentim

Fonte: Eu não sei logaritmo

OH Chile, largo pétalo

de mar y vino y nieve,

ay cuándo

ay cuándo y cuándo

ay cuándo

me encontraré contigo,

enrollarás tu cinta

de espuma blanca y negra en mi cintura,

desencadenaré mi poesía

sobre tu territorio.

("Cuándo de Chile", Pablo Neruda)


É de Neruda não só o poema que inspirou o título do livro "Longa pétala de mar" (Ed. Bertrand Brasil, do Grupo Editorial Record), da escritora peruana Isabel Allende, mas também vários outros textos dos quais a autora retira as epígrafes dos capítulos, bem como parte significativa da história do poeta, que dá pano de fundo à estória de Roser e Victor. Não é à toa, já que é no navio Winnipeg, que realmente existiu, fretado pelo também verdadeiro Pablo Neruda, quando cônsul chileno na Espanha, que as personagens fictícias Roser Bruguera e Victor Dalmau fogem dos horrores da Guerra Civil Espanhola, que também existiu de verdade, rumo ao Chile, país que, como você já deve ter entendido, também é real.


Isabel Allende, autora de "A casa dos espíritos", escreve, assim, um romance histórico, em que realidade e ficção se abraçam por tanto tempo e com tanta força que suas linhas se borram até que já não possamos mais afirmar que a emoção que sentimos é por saber que o mundo viveu mesmo tanto horror ou por compaixão com a história dos protagonistas. A narração cortante e direta abre-se numa das várias cenas chocantes da sangrenta guerra entre os republicanos, que queriam a garantia de manutenção do regime democrático, então substituto da monarquia, e os nacionalistas, que viram a ascensão da esquerda como grave ameaça ao que os conservadores mais prezavam: Victor Dalmau, médico que combatia no lado republicano, inserindo três dedos na cavidade que se abrira no peito de um jovem soldado, deixando exposto seu coração em falência. Victor enlaça o órgão e o massageia com calma, contrastando com o cenário de guerra, até que volte a bater por conta própria.


“Nunca pôde explicar a si mesmo por que introduziu três dedos da mão direita no espantoso ferimento, circundou o órgão e apertou várias vezes ritmada­mente, com a maior calma e naturalidade, durante um tempo impossível de lembrar, talvez trinta segundos, talvez uma eternidade. E então sentiu que o coração revivia entre seus dedos, primeiro com um tremor quase imperceptível e depois com vigor e regularidade”.

Comandadas pelo General Francisco Franco, as forças armadas deram o golpe em julho de 1936 com a convicção de que tomariam todo o país em uma semana. No entanto, trabalhadores e outros cidadãos se opuseram ao regime e resistiram até 1939, no que ficou conhecido como Sublevação para uns, Cruzada para outros e Ensaio geral para a 2ª Grande Guerra para todos, já que os lados do conflito receberam apoios de potências que se enfrentariam entre 1939 e 1945 e que usaram os campos de batalha espanhóis para experimento de armas e estratégias.


"Guernica", de Pablo Picasso, é um dos maiores símbolos desse momento histórico, em que o artista plástico aborda um dos mais violentos bombardeios da Guerra Civil Espanhola, a uma cidade basca, promovido por caças alemães que apoiavam Franco

Os nacionalistas vencem a guerra e cumprem a estratégia franquista de gravar com o sangue de mais de 500 mil mortos o medo na alma dos cidadãos, o que garantiu a sustentação de uma das mais duradouras ditaduras europeias. Victor Dalmau e Roser Bruguera, sua então cunhada grávida, embarcam no Winnipeg, o pequeno navio "concebido para vinte marinheiros em trajetos curtos", como diz o próprio livro, e que leva mais de 2000 espanhóis, em sua maioria republicanos fugidos da ira de Franco e das humilhações a que a França impôs os refugiados, que emigram para o sul-americano Chile, enfrentando forte resistência xenofóbica.


O Winnipeg atraca no Chile e empurra o nome de Pablo Neruda um pouco mais fundo na História, já que foi dele a iniciativa e as negociações para que a viagem pudesse acontecer. Neruda, inclusive, que se torna amigo e se abriga, páginas e eventos políticos depois, na casa do fictício Victor Dalmau, construído por meio de entrevistas que Isabel Allende realizou com sobreviventes da viagem, em que conheceu um médico de 103 anos também chamado Victor.


No Chile, Victor, Roser e sua criança vivem a parte de "Longa pétala de mar" que mais me remeteu a "Amor nos tempos do cólera", Gabriel García Márquez, o que deixou o livro, para mim, ainda mais cativante. A paz, contudo, cai quando a democracia também cai, de novo, agora no Chile, com o golpe de outro general, ainda mais perverso, Augusto Pinochet. Aqui, Allende, a autora do livro e não o presidente deposto pelo golpe, Salvador Allende, oferece mais uma longa e rica aula de história, em que a matéria central torna sua obra ainda mais atual, uma vez que permite discussões sobre liberdade, totalitarismo, abuso de poder, exílio e direitos humanos.


Victor e Roser se exilam mais uma vez, agora fugindo da ditadura chilena, assim como o fez a própria autora, Isabel Allende. E talvez seja spoiler dizer que eles conseguem retornar ao país que aprenderam a sentir como o de sua origem afetiva, mas não há como encerrar essa experiência de leitura sem dizer que foi ali, com os dois no Chile, que tive, já no fim do livro, uma forte crise de choro, efeito típico, pelo que eu soube, da literatura de Isabel.


Mais do que inspirador, o livro é, sobretudo, um aprendizado, já que permite acesso detalhado a momentos da História que não vemos no centro de muitas obras de arte, como a Guerra Civil Espanhola e a ditadura chilena, que tanto nos remete à nossa, tendo, inclusive, seus entrecruzamentos. Mal posso ver a hora de ler mais tanto do tema como da obra de Isabel Allende.


Para usar na sala de aula

Para usar na redação



O que eu li para este post:


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Dawton Valentim | @dawtonv

Professor de Redação e Linguagens

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